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“Deste lado, a outra margem do infinito / onde o crepúsculo saúda o regresso”: tempo e memória na poesia de Conceição Lima

por Adriane Figueira
Foto de Luísa Machado para a resenha literária “Deste lado, a outra margem do infinito / onde o crepúsculo saúda o regresso”: tempo e memória na poesia de Conceição Lima, por Adriane Figueira.

​Adriane Figueira é paraense, nascida e criada às margens do Tapajós, mas vive há uma década na capital carioca. Tem um gato amarelo chamado John Lennon. É licenciada em Letras (UFPA), mestra e doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas (USP). Entusiasta da escrita, pesquisadora, revisora, professora e poeta intimista. Revoada do dragão (Patuá, 2021) é seu primeiro livro. Filha do raio e da tempestade, uma lírica desassossegada. Escreve quase todos os dias para não sucumbir ao labirinto dos sonhos e das vontades.


O espaço da escrita é sempre um espaço de/em transformação de sujeitos e seus corpos. Na busca pelo desconhecido, a poesia se lança e a(o) poeta ergue sua voz na dança inebriante das palavras lançadas no papel que são, para além de estética verbal, uma maneira de estar no mundo e driblar o tempo que corre por todos os lugares e nenhum lugar, porém, paradoxalmente, nos empurra por novas paisagens e paragens.

É a obra A dolorosa raiz do Micondó (2012), da poeta e jornalista de São Tomé e Príncipe (país localizado na África Ocidental), Conceição Lima, que ditará esse trajeto. Este livro, com seus 27 poemas, incide luz sobre uma parte obscurecida, para mim, enquanto mulher branca em outro contexto cultural, e atravessada por outras subalternidades. Como, afinal, pensar os novos espaços de vivências e escritas experienciados por corpos negros que compartilham comigo o sexo biológico e a língua portuguesa? Ou, para usar um termo de Edward Said, como pensar a partir dessas “geografias imaginárias”?

Esse texto se ergue como ponte que busco atravessar movida pela necessidade e pelo afeto do encontro: um encontro com o desconhecido não-ausente, com a força feminina que move a pena e o mundo. São muitos os questionamentos e peço licença a todas que constroem, desde sempre, essa cadeia mobile de poéticas, existências e atravessamentos. Essas palavras são uma tentativa de toque, de reconhecimento.

***

O discurso, de uma imaginada universalidade dentro da literatura, é o que se apresenta em termos acadêmicos e nos meios formais de órgãos voltados à disseminação e valorização da(s) cultura(s), sob uma perspectiva ocidental eurocêntrica. Quando pensamos a obra, voltamos o olhar para o que está estabelecido como belo e edificante, baseado em critérios contestáveis de linguagem e alcance, de poder econômico, político, diferenças de gênero e de raça. A produção intelectual de mulheres negras é o que há de mais marginal dentro dessa “escala de qualidade”.

Escrever numa língua que não é a sua — a nativa —, ou fazer uso de termos, símbolos e lugares que não “pertencem” ao contexto de quem narra/cria, é transitar pelas muitas possibilidades de discurso, ampliar o alcance e desestabilizar o que é visto como “imóvel”. Nada dura, mas é possível fazer com que o verso persista, faça sentido afastado de um determinado contexto localizado.

A poeta Conceição Lima, no poema “Canto obscuro às raízes”, primeiro texto da obra em questão, anuncia: “Que nenhum idioma nos proclame ilhéus de nós próprios…” (LIMA, 2012, p. 15). O longo poema é marcado por versos que se opõem, se afirmam e se negam. Estão a cada nova linha convocando o leitor ao mergulho profundo na inconstância, no efêmero.

A mulher que procura sua casa e nesse não-encontro se encontra com suas muitas versões próximas e distantes, que experimenta a dor e o gozo, a liberdade e o horror do cárcere, a cegueira que arrasta a humanidade para o lodo do esquecimento: “[…] Eu e minha tábua de conjugações lentas / Este avaro, inconstruído agora / Eu e a constante inconclusão do meu porvir / Eu, a que em mim agora fala…” (LIMA, 2012, p. 18). A poeta transita pelos escombros do poema e se ergue nas fissuras do tempo, construindo seu próprio trajeto que resta sempre incompleto. 

Deslocar o olhar e o verbo é perceber para além do centro, é um movimento urgente e transformador. Este reordenamento é revolucionário, uma busca incessante pelas raízes que engendram as relações e os corpos que se interconectam com esse cosmos amplo e contraditório, sem que haja uma predefinição vinda do outro, do que desconhece o trajeto e lança mão de uma generalidade.

No livro A dolorosa raiz do Micondó, Lima revisita templos e tempos, opõe símbolos e abre o flanco da palavra à procura de suas mil raízes enraizadas, não há somente dor e lamento, há esperança e afeto depositados aos pés da árvore sagrada.

A memória reinventa e amplia os cenários pensados e criados por Conceição Lima, quando revisita suas pegadas. O tempo, como agente e lugar, tem sido central para pensar os espaços das (novas) narrativas e das manifestações culturais tão plurais dentro da literatura e das artes. Ao erguer a pena, a poeta se coloca não apenas como meio, mas como centro do discurso que engendra e reaviva memórias coletivas e particulares num movimento centrípeto, devir errático.

A poesia de Conceição Lima transita de fora para dentro e pelo avesso. Sendo ela uma mulher que viveu e estudou na Europa, traz para os seus poemas o olhar estrangeiro, as percepções que cruzam o espaço e modificam o tempo. Uma africana deslocada e que procura na raiz da árvore sagrada as suas origens, sua ancestralidade, mas não permite que se apaguem os rastros ou lhe ditem palavras.

A poeta procura e encontra em sua própria casa, que é o seu corpo, a geografia dolorida e amorosa do espaço de destruição e reconstrução, ou como no curto poema “Arquipélago”: “O enigma é outro — aqui não moram deuses / Homens apenas e o mar, inamovível herança.” (LIMA, 2012, p. 53). O mar funcionando, nesse contexto, como a grande veia da humanidade que carrega em seu fluxo o sangue salgado dos homens, a vida e a morte em travessia, um modo de interligar continentes insulares e de não esquecer os motivos do trânsito, por vezes, forçado e mortífero.

Leio o mar e as anônimas pegadas como esse legado que nos conecta, pois para além dos questionamentos que nos atravessam enquanto seres políticos dotados de vícios e vontades, as marcas na areia e as águas do mar são a nossa herança em comum, paradoxalmente estática, pois não importa de onde se mira, de onde se esteja em tempo ou espaço, o mar corre por todos os lados do globo e modifica todas as paisagens. Buscamos o enigma!

No livro A dolorosa raiz do Micondó, Lima revisita templos e tempos, opõe símbolos e abre o flanco da palavra à procura de suas mil raízes enraizadas, não há somente dor e lamento, há esperança e afeto depositados aos pés da árvore sagrada. As raízes carregam nascimentos e mortes. O Micondó é a árvore que aqui simboliza o retorno e a linhagem, os epitáfios são as inscrições deixadas no túmulo pelos que permanecem, em singela homenagem aos encantados.

No poema “A mão”, Conceição Lima transfere a humanidade para os dedos que cavam a terra e germinam os grãos. Há, em A dolorosa raiz do Micondó, dois excertos de dois poemas, “São João da Vargem” e “Sóya”, respectivamente, que conversam entre si e devolvem a essa voz o alento e a certeza de ser quem se é e ainda assim nunca parar de crescer e mover raízes além-mar, nas memórias que engendram a vida e suas histórias: “O micondó era a força parada e recuada / escutava segredos, era soturno, era a fronteira / e tinha frutos que baloiçavam, baloiçavam / nunca paravam de baloiçar.” (LIMA, 2012, p. 58) e “Há-de nascer de novo o Micondó — / belo, imperfeito, no centro do quintal. / À meia-noite, quando as bruxas / povoarem okás milenários / e o kukuku piar pela primeira vez / na junção dos caminhos.” (LIMA, 2012, p. 67).  

Minhas palavras não pretendem encerrar o ciclo das descobertas, pelo contrário, são a porta de entrada para os mistérios não romantizados, ou o que é óbvio, sem aura nebulosa: a vida que pulsa nas veias dos irmãos e irmãs marcados pelo abandono, pelo ódio e pela rejeição; mas não só ou solitários. Não há aqui conforto, ainda é custoso falar sobre dores que não sinto, mas é urgente que os espaços sejam respeitados e abertos, que haja dignidade para todos.

Conceição Lima me ensina que é preciso olhar para além do próprio centro, que é necessário que haja reconhecimento, mas antes de tudo, é preciso buscar dentro o que te move, e que o discurso da heteronormatividade branca não encarcere subjetividades fora das normas impostas. Meu texto procurou trafegar pelo espaço das águas mornas, da fertilidade da terra e como não poderia deixar de citar os versos finais do último poema da obra de Conceição Lima, lida nessas páginas reflexivas, inauguro o meu lugar de afeto dentro do silêncio que grita na poesia: “[…] Aqui onde o inferno acontece / neste lugar onde me derramo e permaneço / inauguro a véspera da minha casa. / O meu silêncio franqueia / o umbral de qualquer coisa. (LIMA, 2012, p. 71).


Referência

LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do Micondó. São Paulo: Geração Editorial, 2012.


Foto de Luísa Machado.


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Mais sobre a obra

“Eu nunca escrevi diários! Isto aqui é um extravasamento, um inventário estilhaçado, sem datas fixas no calendário, sem horários demarcados — guiado por Kairós”. Assim escreve no preâmbulo a autora de cacos retidos na margem, nomeando Kairós como preceptor de sua jornada entre a prosa e a poesia e, nesse simples ato, recusando a medida, a exatidão e a linearidade.

O tempo da palavra de Adriane Figueira é o do extravasamento. Os textos desse livro são desenhos sutis, quase oníricos, de um labirinto de memórias e vertigens que, solitário e vigilante, assoma como possibilidade de um contágio verbal que desoculta as tempestades da nossa experiência.

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